O Voo Invisível (Alfredo Barros)

Começo a escrever esse texto a 8000 metros de altitude em algum lugar entre Porto Alegre e Curitiba. Dirijo-me à CINETVPR, a Escola de Cinema do Estado do Paraná, onde darei a primeira aula de montagem cinematográfica do semestre para uma turma de calouros. Normalmente inicio minha primeira aula com um documentário sobre montagem, “The Cutting Edge – The Magic of Movie Editing” (traduzido no Brasil por “Um Corte no Tempo: A Magia da Edição de Filmes”) 1. Logo no início do documentário, o montador e mixador norte americano Walter Murch faz uma comparação bastante curiosa e reveladora sobre a descoberta da montagem na história do cinema e a coincidência do momento em que ocorre com ano em que o homem conseguiu voar pela primeira vez. Para Murch, o impacto do surgimento da montagem sobre a linguagem cinematográfica foi tão libertador e revolucionário como a possibilidade da aviação o foi para a humanidade. Como montador, me sinto lisonjeado com tamanha “responsa”, e gostaria de aproveitar esta oportunidade para compartilhar algumas reflexões sobre o meu trabalho junto às produções do Núcleo de Especiais da RBS TV.

Vou começar falando um pouco sobre coisas que aprendi desde que me meti nessa enrascada de montar filmes. Tentarei estabelecer algumas coisas em que acredito serem valores ou princípios importantes para o meu trabalho como montador. Darei alguns conselhos, pois é o que geralmente os montadores fazem pelos diretores, dão conselhos, e vou trazer algumas memórias de trabalhos ao acaso. Nem sei se são os melhores exemplos ou os mais importantes, mas devem servir para alguma coisa, pois pularam na frente dos outros na fila de eventos que compõem minhas lembranças profissionais. Espero que a leitura seja útil.

Para começar, gostaria de dizer que aprendi com o Giba que... Na verdade, aprendi tudo com o Giba Assis Brasil. Cito o nome dele umas 20 vezes em cada aula em que falo sobre montagem, e serei eternamente grato pela humildade, paciência e generosidade desse que tem sido meu grande mestre e amigo nos últimos anos. Desde que me convidou para ser seu assistente de montagem na Casa de Cinema de Porto Alegre em 1999, tive o privilégio de compartilhar algumas centenas, talvez milhares de decisões de cortes ao seu lado em filmes como “O Sanduíche”, de Jorge Furtado; “Dona Cristina Perdeu a Memória”, de Ana Azevedo; “Houve uma Vez Dois Verões", “O Homem que Copiava" e “Meu Tio Matou um Cara”, também do Jorge; “Sal de Prata", do Carlos Gerbase; e outros tantos filmes, vídeos, seriados e programas de teledramaturgia. Mas a coisa mais importante, e talvez a mais elementar que eu aprendi com o Giba, foi manter uma atitude de profundo respeito pelo espectador e pela história que estamos construindo na sala de edição. Tendo essa postura como um princípio ético da maior relevância, acredito que todas as decisões de montagem acabam sendo tomadas sob essa perspectiva, ou seja, a partir da inclusão do espectador como um fator determinante e imprescindível no momento de fazer os cortes. Acredito que, mais do que uma atitude de generosidade com o público, essa ética do corte invisível e funcional, ou “clássico” como preferem alguns, é o vértice a partir do qual todos os princípios e “regras” de montagem são estabelecidos. “O montador é o ombudsman do público", costuma dizer Walter Murch, e o segredo para exercer essa função é deixar o nosso EU espectador guiar nossas escolhas de cortes para cada cena. Todos somos espectadores, e é esse conhecimento adquirido desde a infância que deve conduzir o trabalho do montador.

A pergunta preferida do Giba é “tu acha que essa cena funciona?”. A palavra “funciona” vem do verbo em inglês “to work”: funcionar; causar; organizar; resolver; operar, ou seja, o Giba sempre se preocupa se o artifício do corte é capaz de “convencer” o espectador, fazendo com que ele entenda a cena sem perceber a natureza artificial da montagem que a constrói. No mesmo documentário que exibo em aula, Martin Scorcese fala sobre o tempo em que o cinema dava os primeiros passos na construção de sua linguagem, e diz que assim como os pioneiros, ainda hoje nos perguntamos se nossas hipóteses de corte fazem sentido para o espectador.

No dicionário Houaiss encontramos um significado para a palavra “Montagem” que se encaixa perfeitamente nesse contexto: “Montagem, do francês 'montage' (1675), operação pela qual se juntam peças de um mecanismo para fazê-lo funcionar”. Uma cena funciona quando é inteligível para o público, que normalmente não conhece o roteiro do filme e muito menos como ele foi feito, e ao mesmo tempo não deixa transparecer os mecanismos que a mantém de pé. O montador normalmente procura esconder essas junções, estruturas, articulações do esqueleto que sustentam a ilusão de realidade que o filme deve provocar. Nesse sentido, o sucesso de uma montagem deve ser medido a partir do grau de imersão a que o espectador comum é submetido. Quanto mais envolvido estiver com a trama, tanto maior a eficiência do trabalho do montador. Cada corte é uma mentira que será tão perfeitamente contada quanto o for imperceptível para o público.

É evidente que nem sempre é assim. Digamos que quase sempre o é. Nas partes mais importantes do filme, quando queremos o público dentro da história que estamos contando, ou seja, longe da poltrona do cinema ou da frente da TV, prestando atenção tão somente no desenrolar dos eventos da trama, nas ações e motivações dos personagens, no estado de espírito do protagonista (ou antagonista), nas memórias ou maneiras de ver o mundo, enfim, a montagem deve ser sempre imperceptível. Pessoalmente, acredito que uma boa montagem sempre será invisível. Mesmo quando os cortes são deliberadamente “aparentes”, eles devem manter-se conectados à história ou à visão de mundo, estado de espírito, psicologia dos personagens, ou seja, a técnica deve servir à narrativa e não o contrário.

Edward Dmytryk, famoso diretor e montador norte-americano, criou uma lista com uma série de regras de montagem em seu livro “On Film Editing” 2. Sete delas se popularizaram entre os montadores e eu vou citar aqui apenas duas delas, que a meu ver, resumem as demais. Só por acaso, são a primeira e a última da lista3:

Regra numero 1: Nunca faça um corte sem um bom motivo.

A única razão para se fazer um novo corte é melhorar a CENA.

Regra número 7: Conteúdo Primeiro – Depois a forma.

"Habilidades técnicas não servem pra nada se são utilizadas apenas para fazer filmes que tem pouco a ver com a natureza humana. (...) O editor deve investir todos os seus esforços no sentido de potencializar a força emocional do filme. (…)”

A montagem que chama atenção para a sua própria técnica presta um desserviço ao filme e ao público. Esse é um dilema que todo montador enfrenta ao lidar com a tal pergunta preferida do Giba: “Será que isso funciona?”
Mas como sabemos se uma montagem funciona? Novamente o melhor aliado do montador é o seu espectador interior. Se ele entende e se sente satisfeito com o que assiste, provavelmente a montagem funciona. Parece muito subjetivo? Sim, é totalmente subjetivo! O que guia o trabalho do montador não é a técnica, mas a intuição. Dede Allen4, uma das maiores montadoras da história do cinema norte-americano dizia “I cut with my gut!” (Eu corto com as minhas vísceras!), uma ótima frase que, traduzida para o português, infelizmente ganha um efeito escatológico muito além do necessário. O corte que funciona é aquele que obedece a intuição do nosso EU espectador. Daí a importância de treinarmos o nosso espectador interior com muita prática de “espectar”, não só bons e maus filmes, mas experiências de vida, lembranças, eventos, músicas, livros, conversas, discussões, comportamentos, etc.
Lembro que uma vez pedi ao Gilberto Perin (diretor artístico do Núcleo de Especiais) para disponibilizar aos meus alunos de montagem o material bruto de uma cena da minissérie A Ferro e Fogo5, da qual fui montador. Até hoje eu devo a ele um retorno sobre esta experiência que acabou não dando muito certo por motivos que não interessam aqui. A cena que os alunos deveriam re-montar era a primeira da minissérie, quando os personagens são apresentados ao público. Lembro que tinha uma seqüência em que a mãe, interpretada pela atriz Larissa Maciel, entra em casa e o filho, Jorginho Jr., diz que está com fome. A mãe responde que não tem o que dar de comer ao filho, ao que o filho responde com alguns segundos de silêncio. A tal cena, muito bem decupada, oferece um close bem longo do menino com um olhar triste, até que a mãe volta com um copo de leite, a única comida disponível. Um dos meus alunos fez um corte nesse close, diminuindo drasticamente sua duração. Quando eu assisti a montagem dele, protestei e perguntei por que ele havia cortado aquele close maravilhoso pela metade. Ele me respondeu que achava que aquele plano estava muito longo, que aquilo era um “tempo morto” na cena. Só então eu percebi que o meu espectador interno estava mais preparado para lidar com cenas de filhos com fome do que os espectadores internos de meus alunos, que não só não tinham filhos como nunca devem ter passado fome na vida. Descobri que aquele plano do garoto me emocionava porque eu já havia passado por situações parecidas, ainda que não tão extremas, enfim, qualquer pessoa que tivesse filhos perceberia o impacto emocional daquela imagem. Além disso, a interpretação do Jorginho é assustadoramente convincente na série inteira, mas naquele momento, ele está inesquecível. Nem tudo é possível ensinar, algumas coisas precisam ser vividas.
Depois de defender veementemente o corte invisível, me sinto na obrigação de relativizar um pouco a questão. Como princípio, o montador deve conduzir cuidadosamente a atenção do espectador durante toda a história, mas sempre existe uma ampla margem para o experimentalismo em qualquer filme. Todos os filmes exigem inúmeras soluções de montagem para diversos problemas que vão desde um ator que não convence até uma seqüência inteira que não foi rodada por falta de orçamento ou produção. Geralmente é nesses momentos que o montador pode e deve brilhar, inventando soluções a partir do material bruto, combinando cenas brutas, articulando significados possíveis entre olhares, gestos e até falas perdidas no “chão da sala de montagem”, ou melhor, no browser do Final Cut.
A primeira montagem que fiz para o Núcleo foi o curta “De 10 a 14 Anos”, dirigido pelo Márcio Schoenardie (Histórias Curtas – 2004). Ainda considero essa uma das melhores montagens que já fiz. Conheço o Márcio desde que ele era produtor de set, e o conheci durante a filmagem de um curta metragem em que trabalhei como assistente de direção6. O Márcio acabou se tornando meu melhor amigo. Estaria mentindo se dissesse que isso não fez diferença no resultado do trabalho. Não tem dinheiro que substitua o afeto ou a admiração pelo diretor em matéria de motivação. É natural que seja assim. O montador é o cara que passa mais tempo trabalhando ao lado do diretor de um filme. Esse histórias curtas foi o primeiro trabalho de ficção que assinei como montador e não como assistente de montagem. Pude aplicar tudo o que tinha aprendido com o Giba nos anos anteriores, e quando pude testar meu talento nessa função. Não sabia ainda se tinha “jeito pra coisa”. Na verdade, ainda não tenho certeza disso mesmo hoje. O que me mantém trabalhando com isso é a certeza de quem vê os filmes que monto. Esse curta me deu também o primeiro único prêmio que já ganhei na profissão. Ainda me lembro da minha surpresa quando chamaram meu nome na noite em que ganhamos 7 dos 13 prêmios com o filme. A montagem do curta do Márcio é bem discreta, não tem nada de virtuosismos técnicos. O que mais chama a atenção no filme são alguns efeitos impressionantes de finalização criados pelo André Santos e Alexandre Coimbra. O roteiro do Márcio é comovente, falava sobre o tema preferido dele na época: anos incríveis, a infância irrecuperável, sindrome de Peter Pan, etc. É um tema que sempre emociona os adultos e provoca uma profunda identificação entre os adolescentes. Não por acaso, o filme lembra muito o “Houve uma Vez Dois Verões”, do Jorge Furtado que, não por acaso, era nosso ídolo desde a adolescência. Lembro de algumas críticas nesse sentido, disseram que o filme era uma cópia do filme do Jorge, o que considero uma tremenda bobagem. O “De 10 a 14 Anos” pode ser uma citação ou até uma homenagem ao Jorge. Tanto que o Márcio chamou o Pedro Furtado, o Juca do “Houve Uma Vez Dois Verões” para fazer a voz do Marciano, o protagonista da história. Para quem assistiu “Anos Incríveis”7, aquele seriado maravilhoso que passava na TVE, ou o clássico “Houve uma Vez Um Verão”8, fica evidente quetanto o Jorge como o Márcio beberam na mesma fonte. Trabalhei como assistente de direção e de montagem no “Houve Uma Vez Dois Verões”, e sempre vi mais diferenças do que semelhanças entre os filmes. Adoro tanto um como o outro.
O meu projeto seguinte com o Márcio foi o documentário “Mãe Rockeira”, sobre a mãe do Alexandre, o “Guri”, da banda Pública. Não gosto da minha montagem nesse documentário. Ela ficou “over”, exibida, arrogante, prepotente, “metida a besta", narcisista. Lembro que quando fomos assistir aos episódios naquela sessão para as equipes, saí envergonhado. O documentário é uma vertigem de cortes rápidos, ritmo alucinante, festival de exibicionismo técnico. A técnica descolada do conteúdo, a forma primeiro e.. qual era o conteúdo mesmo? Enfim, lembro que assistimos as outras três produções daquele ano9, não lembro mais que ano era aquele, e quando terminou o primeiro documentário, “Tempo de Colher”, dirigido por André Constantin e montado pelo Voltaire Barbieri, eu percebi que tinha errado a mão na minha montagem. O Voltaire me esbofeteou com uma montagem brilhante e invisível, a serviço da história, simples, singela e comovente. Nem sabia quem era o “Voltinho” naquela época, fui conhecê-lo alguns meses depois. Entrei em pânico quando percebi o que eu tinha feito. O documentário do André foi uma aula de humildade da técnica invisível em favor do conteúdo. Encontrei o Márcio e o Bel Merel, produtor do nosso documentário, na saída da sessão, e todos concordamos que “Tempo de Colher” era uma aula de documentário. Eu tive vontade de sumir, voltar a ser “invisível”. Deixei acontecer aquela catástrofe, quis aparecer mais do que o diretor, fotógrafo, roteirista, diretor de arte e, pior de tudo, do que os protagonistas e a história que contavam. Minha pretensão ficou evidente ao final do nosso documentário, quando o primeiro crédito ENORME que apareceu foi o de montagem. Paguei um baita mico e aprendi a lição. Para a minha sorte, o documentário do André estava naquela safra de episódios. Não fosse ele, eu levaria mais não sei quanto tempo até voltar a descobrir o valor da montagem e do trabalho anônimo e invisível do montador. Virei fã do trabalho do André e do Voltinho.
Infelizmente, não foi a última vez que cometi esse erro. Desde então eu passei a me policiar para evitar aparecer mais do que deveria. Mais alguns projetos de “ostracismo voluntário”, e novamente sou convidado para montar um especial para a RBS, a minisérie 7 Pecados, dirigida por Rafael Figueiredo eHique Montanari. Esse foi o primeiro projeto realmente grande de que participei no Núcleo. Quando vi o material bruto e conversei com o Hique e o Rafa, saquei que esse era o projeto para “sentar o dedo” na montagem. Conheci o Hique nesse projeto e monto os filmes dele desde então. Entre os diretores que conheço, ele é o que mais curte montagens aparentes, pirotécnicas e vertiginosas. Quando trabalho com o Hique Montanari, o “câncer do cinema gaúcho”, meu desafio é sempre fazer uma coisa tão maluca na montagem que nem ele tenha coragem de aprovar. Quando o ouço dizer “acho que tá meio DEMAAAIS”, sei que estou chegando perto do filme que o cara tem na cabeça. Apesar de admirar muito o trabalho do Rafa, não tivemos muitas oportunidades de trabalhar juntos depois desse projeto, pois ele tem uma parceria com outro montador muito meu amigo, o Fabinho Lobanowsky.
A primeira cena da série 7 Pecados era uma doideira total. O episódio era sobre o pecado da Ira, e o Nelson Diniz, um dos protagonistas, entrava alucinado numa sala e começava a pintar um monte de rabiscos numa parede. No final conseguíamos ler “Ira” Eu fiquei dois dias montando só esta cena. Como era o primeiro trabalho importante que eu fazia pra RBS, o pessoal estava naquela marcação cerrada, pra saber se eu estava fazendo tudo conforme o figurino. Então, os diretores foram me fazer uma visita para saber como estava ficando a montagem, ao que respondi que “estava um pouco atrasada”. Quando eles viram o que eu tinha feito naquela abertura, eu lembro que o Rafael Figueiredo me disse: “Puxa, agora eu entendi por que tu só fizeste essa cena em dois dias.” Eu estava tentando mostrar tudo o que sabia fazer em matéria de montagem lisérgica. Pouco me importava se a os cortes ficassem muito aparentes, pois eu realmente precisava aparecer. Estava saindo da Casa de Cinema e vi naquele projeto uma possibilidade de entrar no mercado com o pé no fundo. Essa minha ânsia de montagem visível não era problema nem para o Hique e nem para o Rafa, pois tinha tudo a ver com a visão que eles tinham sobre o projeto que estavam dirigindo. Depois de finalizado, percebi que aquela montagem ficou tão ininterruptamente maluca, que se tornou invisível. Depois que a gente entende que vai ser uma pancadaria do início ao fim, parece que o conteúdo ganha relevo, e a técnica vai para o pano de fundo. O problema foi conseguir manter o fôlego por mais 6 episódios. Cada corte me tomava uns 4 dias de trabalho insano, não ficava mais de um segundo no mesmo plano.
Depois desse projeto, passei a ser convidado para montar diversas produções do Núcleo. Comecei uma parceria com a Martinha Biavaschi nos Histórias Extraordinarias e pude me reconciliar com a montagem invisível nos documentários que fizemos. A Martinha me ensinou a valorizar o conteúdo do plano, contemplar o enquadramento em profundidade, buscar o devaneio que a imagem permite se lhe dermos o tempo necessário para isso. Tive ótimos momentos de alegria com a Martinha ao final de cada um desses documentários bem resolvidos na sala de montagem. Aprendi a construir personagens através da costura de suas falas, a valorizar o que diziam com planos longos, contemplativos, que nos permitem mergulhar nas entrelinhas e contradições do texto dos depoimentos. Aprendi como as imagens dialogam com as falas. Quando vemos uma imagem em movimento com uma voz que nos conta ou afirma coisas, naturalmente disparamos atrás de uma relação entre o que é dito e o que é mostrado. Procuramos ler a imagem a partir do que é dito, e acabamos inferindo significados que nem a imagem e nem a fala nos apresenta isoladamente. Isso é a magia da montagem. Quando percebemos isso verdadeiramente, descobrimos o quão assustador é o poder de persuasão envolvido nesse negócio de montagem.
Algum tempo depois, fui convidado para montar o maior e mais ambicioso projeto do Núcleo de Especiais até então: A Ferro e Fogo. A série foi dirigida por Gilberto Perin, e tinha todas as características de uma super produção: três câmeras no set; cenários, adereços, objetos de cena e figurinos de época; uma equipe enorme; montes de figurantes e muito material bruto. Foi minha primeira montagem dirigida pelo Perin, e nos demos super bem. Ele me deixou absolutamente livre pra trabalhar na montagem dos episódios. Eu mostrava o 1º corte , ele me pedia algumas alterações e eu apresentava o 2º corte logo em seguida. A confiança que ele demonstrou no trabalho de montagem foi bastante estímulante. Lembro que o Perin me dizia que queria ser surpreendido pelas soluções de montagem que eu trazia. Isso é uma coisa interessante sobre a relação entre montador e diretor. Tem alguns diretores que querem permanecer o tempo todo ao lado do montador. E tem aqueles que fazem uma reunião no início do processo de montagem e só voltam quando o primeiro corte estiver pronto. Eu geralmente prefiro o cara que me deixa livre pra fazer minha proposta. Quando monto sozinho ou, de preferência, com um assistente de montagem, costumo me sentir mais livre para “fugir” do roteiro. O material bruto sempre permite e sugere uma quantidade absurda de variações e combinações possíveis. Quase nunca a sugestão de combinações proposta pelo roteiro é a melhor. Nada contra o roteirista, pelo contrário. O roteirista imagina os planos e monta o texto em cima do que está imaginando. Se ele pudesse ver o que foi filmado, provavelmente mudaria de idéia também. O Perin sabia que, se ele permanecesse ao meu lado, acabaria impondo a cena que estava imaginando, e nunca teria acesso a cena que eu poderia fazer com o mesmo material se começasse sozinho. Isso é engraçado, e é parecido com aqueles testes Roschach.10 Depois de ser conduzido pelo diretor a olhar para o material bruto de um determinado “ângulo”, ou seja, com uma perspectiva de ordenamento determinada, é bem mais difícil deixar de ver essa possibilidade. O Perin levava isso tão a sério que evitava até assistir o material bruto junto comigo antes de eu esboçar um primeiro corte. O método deu certo e quando trabalhamos juntos mais uma vez no especial A Visita, repetimos o mesmo processo.
De uns tempos pra cá eu deixei de ler os roteiros antes de montar um filme. Nada a ver com uma implicância com os roteiristas, mas acredito que a principal função do roteiro é ajudar a equipe de filmagem. Traçando um paralelo tosco com o futebol, o roteiro é a preleção do técnico no vestiário. A montagem é o goleiro de frente para o atacante na hora do gol. Se a preleção foi bem feita, certamente o montador vai contar com alguns zagueiros para ajudá-lo a tirar aquela bola da área e mais uns atacantes para metê-la na goleira do adversário. A montagem lida com a realidade do que foi filmado, com os erros e acertos da decupagem e da filmagem. É quando o talento para improvisar é muito bem vindo. Mas o motivo porque eu evito ler os roteiros tem mais a ver com essa coisa de não me deixar contaminar no momento de ver o material bruto pela primeira vez. Eu tento entender as cenas e a história a partir dos fragmentos que chegam pra mim na forma de imagens e sons de uma narrativa que eu ainda não ouvi até o fim. Claro que isso nem sempre funciona, mas na maior parte das vezes é uma experiência bem interessante e gera resultados imprevisíveis, sempre a favor do filme. O Walter Murch é ainda mais radical do que eu, ele monta o primeiro corte das cenas sem nem ouvir os diálogos, apenas pela imagem.
Depois do A Ferro e Fogo e A Visita eu participei de um projeto muito bacana chamado Primeira Geração, mas acabei supervisionando as montagens da minha equipe de montadores, o que é uma experiência completamente diferente de montar diretamente. Foi muito interessante assistir os cortes feitos por meus ex-alunos e opinar em cima da montagem deles sem ter visto o material bruto. Eu olho como espectador, sem ler o roteiro, e aponto direto para o que não consigo entender, o que acho chato, que me faria trocar de canal, enfim. Os montadores resolvem as cenas e eu vejo o segundo corte. É uma prévia do que o Perin vai fazer quando o corte chegar nele. Nessa função eu apenas evitava que coisas muito elementares passassem adiante. A coisa mais engraçada qu eeu lembro sobre esse projeto, foi uma discussão que eu tive com o assistente de direção do Rafael Figueiredo. O cara insistia em conversar sobre o roteiro comigo antes de começar a montagem, e eu tentava evitar ao máximo aquele papo, pois não queria saber do roteiro. Normalmente esses papos sobre o roteiro dos filmes começam com referências a outros filmes, diretores e estilos. Poucos lembram que existe um material filmado que tem histórias pra contar, estilos para sugerir, tratamentos e tempos para serem descobertos. Foi ali que eu decidi começar a evitar o assunto roteiro, sobretudo com assistentes de direção.
Esse assunto, aliás, é uma coisa sobre a qual eu gosto de conversar em aula. Eu digo aos meus alunos: “O material bruto do filme é um ser vivo. Respeitem-no como tal.” O que quero dizer com isso? Precisamos deixar o filme que estamos fazendo conversar conosco, pedir o que ele precisa para nascer, crescer e se desenvolver. Acredito que as referências devem servir para tudo o que vem antes da montagem. Na montagem, quem aponta a direção é o material bruto, ou seja, o filme. Tenho horror de referências na montagem. Para mim, isso é auto-sabotagem criativa. Acho uma estupidez e um desrespeito com aquele ser vivo que espera pela oportunidade de vir ao mundo, o material bruto do filme. Sempre tento defender o filme até do próprio diretor, se for preciso. Nossa, que dramático ficou esse parágrafo.
Recentemente, tive o grande privilégio de trabalhar com o meu guru Claudinho Pereira no episódio Crime dos Banhados do projeto Histórias Extraordinárias. Foi o melhor episódio de Extraordinárias que já caiu na minha mão. A princípio, o próprio Claudinho iria montar o programa, mas ele teve um piripaque no coração no meio da filmagem e resolveu me pedir socorro. A história extraordinária era tenebrosa, um crime hediondo cercado de mistérios e segredos e que nunca foi completamente resolvido. Mas o que o Claudinho queria contar era a história do filme que foi feito sobre o tal crime. Ele recriou as cenas do filme, que não mais existia, e fez planos belíssimos no estilo “faroeste caboclo retrô”, e eu apliquei uma alteração de velocidade e cores para envelhecer aquela filmagem em HD. O resultado final ficou muito convincente.
Um aspecto importante do trabalho de montagem é a manipulação da performance dos atores e atrizes. Existem muitas histórias e lendas sobre brigas, ódios e amores entre atores, atrizes e montadores ou montadoras. Quero aproveitar a oportunidade para dizer que sempre procuro melhorar a performance do elenco, ajustando os tempos entre as falas dos diálogos, substituindo tomadas de som e imagem para favorecer ao máximo o que o ator ofereceu de melhor durante a filmagem. Jamais um montador vai deliberadamente prejudicar a atuação de quem quer que seja, pois esse ônus recai também sobre a performance do montador. O que pode acontecer é um ator/atriz ser eliminado(a) de um filme, ou ter sua participação reduzida ao mínimo, porque seu personagem não funciona dentro da história, nesse caso, o culpado seria o roteirista, ou porque, o que acontece com mais frequência, a sua performance é tão sofrível que acaba prejudicando o filme. Quando isso acontece, eu sempre parto em defesa do filme, e vou eliminar tudo o que for possível de ser extirpado sem comprometer a história. Nada é mais importante do que o filme, e nada compensa uma performance sofrível. Sempre digo que nada substitui um bom trabalho de ator/atriz. Posso fazer um filme excelente sozinho com um ótimo ator. Mas nem toda a parafernália hollywoodiana pode salvar um filme com atuações medíocres.
Mas talvez a função mais importante do trabalho do montador é descobrir o filme enquadrado pela visão do diretor, principalmente a partir do que ele filmou no set. Parece óbvio, mas por incrível que pareça, normalmente os diretores tem dificuldade para aceitar o que eles mesmos filmaram. Tipo uma depressão pós-parto. As possibilidades de montagem de um filme são infinitas, e a personalidade do montador, sua história de vida e seu repertório pessoal, vão estabelecer o diálogo entre o material bruto, o diretor e o que o filme pode ser. Nesse sentido, eu sempre tento orientar novos diretores a esquecerem tudo o que existe fora da sala de montagem quando estão vendo o seu filme. Esqueçam que existe Antonioni, Tarantino, Godard, Almodóvar, Teixerinha, Luiz Rangel, etc. O que existe é o material bruto e a história que queremos contar. O próprio material normalmente vai nos indicar o melhor caminho para narrá-lo.

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1Este documentário é um extra do filme Bullit – USA 1968.
2Dmytryk, Edward. On Film Editing: An Introduction to the Art of Film Construction, Boston: Focal Press, 1984.
3Ver neste site: http://everything2.com/title/Edward+Dmytryk%2527s+rules+of+film+editing
4Montou “Bonnie and Clyde”, “The Final Cut", “Reds”, entre outros.
5A Ferro e Fogo – RBS-TV, 2007, direção de Gilberto Perin.
6O Oitavo Selo – 35mm – direção de Thomaz Créus.
7“The Wonder Years” - USA 1988.
8“Summer of 42” - USA-1971 – Direção de Robert Mulligan.
9“Tempo de Colher”, de André Costantin; “Tradição de Mãe para Filha”, de Jerri Dias e “Mãe: Imagem e Sonho”, de Gustavo Fogaça.
10O teste de Rorschach é um teste psicológico projetivo desenvolvido pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach. O teste consiste em dar possíveis interpretações a dez pranchas com manchas de tinta simétricas. A partir das respostas, pode-se obter um quadro amplo da dinâmica psicológica do indivíduo.

Fonte: Wikipédia [http://pt.wikipedia.org/wiki/Teste_de_Rorschach

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